19 outubro, 2009

Justiça a duas velocidades

A propósito das declarações recentes do PGR, o DN elenca alguns casos que vêm sendo investigados ao longo dos últimos anos, ainda sem conclusão à vista:

Casos que continuam em investigação (DN – 19/10/2009)
Os magistrados do Ministério Público começaram por "declarar guerra" contra o chamado crime de 'colarinho branco' - praticado pelos mais ricos envolvendo, sobretudo, corrupção e branqueamento de capitais. Defendiam que se deveria investigar tudo e todos. Porém, começam agora a desconfiar dos megaprocessos e a por algum travão às investigações em massa. Porque, até agora, são maiores os impactos mediáticos do que os resultados.
O inquérito-crime do caso de pedofilia da Casa Pia foi aberto em Novembro de 2002. O julgamento, que já vai com 443 audiências, iniciou-se em Novembro de 2004. Ainda não há data para a realização das alegações complementares. Só depois disso é que o colectivo de juízes pode começar a elaborar o acórdão final. O processo tem 214 volumes, com perto de 50 mil páginas e 504 apensos. Foram ouvidas em auto mais de 600 pessoas. Em tribunal foram ouvidas 987 testemunhas. Ao longo do processo foram sendo extraídas certidões para organização de outros 14 processos.
Aberto em Julho de 2006, a partir de uma certidão retirada do processo Portucale, o inquérito principal à aquisição dos submarinos identificou uma conta bancária na Suíça por onde terão passado de 30 milhões de euros com destinos suspeitos.
A Investigação que conduziu à designada "Operação Furacão" iniciou-se me Março de 2004 com base em informações das autoridades fiscais do Reino Unido, que verificaram a existência de diversas sociedades registadas na mesma morada que declaravam a emissão de facturas registadas em Portugal. A investigação incidiu, simultaneamente, em instituições financeiras e empresas de vários sectores de actividade, nomeadamente banca, construção civil e casinos, por práticas de evasão fiscal nos anos de 2003 a 2005, que terão lesado o Estado em mais de 200 milhões de euros.
O caso Freeport começou a ser investigado em Outubro de 2004, após uma carta anónima (cujo autor já é conhecido) enviada para a PJ de Setúbal, onde se levantavam suspeitas de corrupção envolvendo José Sócrates. Ainda está em inquérito no MP.


O “arrastar” destes casos, que têm em comum o envolvimento de figuras públicas, suscita críticas dos mais variados quadrantes sem que o cidadão comum possa conjecturar outra justificação que não passe pela comum representação de que existe uma “justiça para ricos e outra para pobres”.

O jornal
I cita algumas passagens do relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, onde se depreende que a raiz do problema emerge das relações que o Estado e o poder político têm mantido com os cidadãos.

Observatório arrasa justiça portuguesa (I - 15/10/2009,por Inês Cardoso)
“Lembrando que a justiça "é chamada a desempenhar um papel central" num contexto de crise, em que os cidadãos se vêem "cada vez mais confrontados com um conjunto vasto de injustiças sociais", o relatório, a que o i teve acesso, sustenta que "os poderes político e judicial têm que assumir um alto compromisso com os cidadãos". E esse compromisso passa sobretudo pelo combate à criminalidade grave e à corrupção. "A verdade é que, até agora, a justiça portuguesa não conseguiu que um único caso de criminalidade económico-financeira grave, que envolvesse pessoas poderosas, tivesse chegado ao fim com uma condenação transitada em julgado." Razão para que parte do relatório final, já entregue em Julho ao Ministério da Justiça mas não divulgado, analise as causas dessa falta de resultados.”


Existem, compreensivelmente, outras deficiências no seio do sistema de justiça que passam, por exemplo, por lacunas na formação dos magistrados, problemas na organização dos tribunais ou pelo excesso de burocracia e “papel” que continuam a entupir os canais de comunicação.

Todavia, e como dizia Alexander Hamilton (1802), um dos signatários da Constituição dos Estados Unidos da América, num quadro de separação de poderes, o judicial é o mais fraco. Sem “espada” nem “bolsa”, que correspondem ao exercício dos poderes executivo e legislativo respectivamente, o poder judicial está destituído quer de força, quer de vontade. Apenas lhe compete o julgamento e, mesmo assim, depende dos outros poderes para garantir sua a eficácia (Hamilton, 1802: 210).

P.S. - Em entrevista ao
Correio da Manhã, Bernardo Teixeira, autor do livro intitulado Porquê a mim?, faz uma interessante declaração, assente na crença no “poder dos media”:

Correio da Manhã – O Estado Português mudou o seu nome de baptismo para começar uma vida nova. Não teme que ao expôr a sua identidade com a publicação do livro “Porquê a Mim?” possa ter a sua vida em risco?
Bernardo Teixeira – Sinceramente não penso nas consequências. Acredito que enquanto tiver os holofotes virados para mim, nada de mau me acontece (negritos nossos).

Desde o início do caso Casa Pia, os media estiveram sempre lá com os seus holofotes perscrutadores, na busca da “verdade”. Serão holofotes que iluminam, mas que também podem lançar sombras e cegar quem os enfrenta.
Bernardo Teixeira dá o seu testemunho enquanto vítima e afirma que nada de mau lhe acontecerá enquanto os ditos holofotes estiverem apontados a ele.
Sim, os holofotes estarão apontados enquanto a sua história tiver interesse e puder vender emoções e sentimentos. O problema será quando se apagarem…

Hamilton, Alexander (1802 [1788]) “A view of the constitution of the judicial department, in relation to the tenure of good behaviour – Federalist paper nº78”. In J. Madison, A. Hamilton e J. Jay (pseud. Publius) Federalist, on the new constitution. New York: George F Hopkins, 209-19.

12 outubro, 2009

Segredo de justiça

“Acusados de violação do segredo de justiça, no âmbito do processo Casa Pia, 20 jornalistas começaram a ser julgados, hoje, no Tribunal de Oeiras.

A divulgação do conteúdo de escutas telefónicas ao dirigente do Partido Socialista, Ferro Rodrigues, é uma das questões em causa.

O processo já fora proposto para arquivamento, por ter sido entendido que não existiu dolo (intenção) na prática do crime e já que, segundo a lei, sem dolo, não existe violação do segredo de Justiça.

O Ministério Público decidiu, contudo, recorrer da decisão e o Tribunal da Relação de Lisboa deu-lhe razão, determinando a realização do julgamento.”

Público - 7 de Outubro de 2009 (Paula Torres de Carvalho)


Ao longo das últimas décadas, o reduzido número de jornalistas condenados por violação do segredo de justiça parece indicar uma quase inaplicabilidade da lei, confrontada com o direito à informação, liberdade de expressão, sigilo das fontes, etc.

Se entendermos que o segredo de justiça tem por fim salvaguardar o bom funcionamento da justiça por via da protecção da investigação ou, de acordo com a última revisão do Código de Processo Penal, da protecção dos direitos dos intervenientes processuais, a pena associada ao crime parece desvalorizar estes princípios.

De facto, como assinala Cunha Rodrigues, parece verificar-se uma atitude dualista perante o segredo de justiça, sendo a sua violação pouco relevante na maioria dos casos, mas gerando controvérsia quando afecta indivíduos com um certo estatuto social ou político (Rodrigues, 1999: 35).

O segredo de justiça é, inclusive, caracterizado por um dos jornalistas entrevistados no âmbito do projecto, como uma “arma de arremesso para atirar às pernas dos jornalistas”.

Pode-se argumentar que numa sociedade de pleno direito democrático não se justifica que existam segredos em matérias que configuram pertinente interesse público, invocando-se a necessidade de uma maior abertura e transparência do sistema de justiça. Aliás, como diria Jürgen Habermas, a publicidade do processo e o seu escrutínio público faz parte das funções de controlo democrático por parte da esfera pública (Habermas, 1984: 49-50).

Todavia, e como o segredo pode ser requerido por qualquer das partes, parece quase forçoso que em qualquer processo que envolva figuras públicas, ou que se torne mediaticamente visível, seja invocado o segredo, limitando o escrutínio público onde este mais se justificaria.

Quando há fugas de informação em processos mediáticos é frequentemente difícil compreender até que ponto é que o “interesse público” predomina sobre o “interesse do público”, ou sobre vários interesses difusos (económicos, políticos, pessoais, estratégicos, etc.).

Em jeito de nota final, e ao cabo de alguns meses em que as investigações judiciais marcaram a agenda política, deixaríamos em aberto ao espaço de comentários a seguinte questão:

Até que ponto e em que moldes é que se verificam interacções e articulações entre a periodicidade eleitoral, os ritmos e tempos da justiça e as agendas mediáticas?


Habermas, Jürgen (1984) The theory of communicative action. Vol I, Reason and rationalization of society. Boston: Beacon Press. http://www.amazon.com/Theory-Communicative-Action-Rationalization-Society/dp/0807015075.

Reis, Eurico (2001) “Os tribunais e a comunicação social”. Comunicação ao VI Congresso dos Juízes Portugueses, Aveiro 8 a 10 de Novembro de 2001. Disponível em http://www.asjp.eu/siteanterior/congressos/6congresso_06.html, acesso em 18/06/2008.

Rodrigues, José Cunha (1999) Comunicar e julgar. Coimbra: Minerva.